terça-feira, 3 de junho de 2014

AS VIÚVAS




“Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor;” – Efésios 5.22

A questão da interpretação é, de fato, um enorme problema. Já está mais que assentado que o leitor é, na verdade, autor do que lê e dá sentido. O texto, de certo modo, é mudo, diz o que diz, e quem o interpreta coloca nele seu universo significativo, sua ideologia, teologia, emoções, história, memória, e por aí se vai.

Daí um fundamentalista um dia me disse, Natanael você sabia que a palavra que diz sobre a submissão da mulher ao marido, no original, é submissão mesmo, no sentido radical da palavra, ao que respondi, sim eu sei, e ele disse, então você entende que a mulher deve ser totalmente submissa ao marido, e eu disse, claro que sim, puxa Natanael pensei que a sua teologia não fosse assim tão literalista, e eu disse, pois é, também entendo que o texto deve ser interpretado no seu sentido mais original possível, que a literalidade deve ser cumprida a qualquer custo, pois o sentido do texto está acima de qualquer vontade ou decisão, ele olhou pra mim e disse, olha você me surpreendeu. Então eu fiz uma outra pergunta a ele: E o que você faz com a sequência do texto? É que o mesmo texto que diz que a mulher, literalmente, deve ser submissa ao marido também diz que o marido deve amá-la como Cristo amou a igreja e se entregou por ela. Então morrer aqui é também literal? Ou será que não?

Pois é, a literalidade é uma questão de opção, oportunidade e principalmente, poder. É por conta disso que todo literalista é moralista, para os outros; exige o cumprimento de atitudes e comportamentos, para os outros; e é capaz de fazer as cobranças, mesmo que desumanas, para os outros; porque a literalidade é uma opção hermenêutica variável, ora é, ora não é, depende do interesse e da ocasião. Então Jesuina e eu estávamos lavando louças, porque não há melhor lugar pra produzir teologia que diante da pia, e ela disse, Bem, você viu que o texto de Efésios é dirigido como um desafio às mulheres, como um alvo de entrega da vontade, e não tem nada a ver com os homens, pois não diz, vós homens submetei-vos vossas mulheres à servidão? Você não acha que os homens deveriam passar batido neste texto e pensar mais com o que vem depois? Pois é, é que a hermenêutica literalista, não somente deixa de ser literalista quanto à palavra quando tem interesse, mas distorce o sentido do texto que diz preservar, coloca no texto o que o texto não diz. O literalista faz até o que parece impossível: a hermenêutica da ausência. Isto é, quando interessa, afirma que se nunca foi assim na história, é porque não é bíblico, como se a ausência de alguma coisa pudesse ter significado objetivo e claro. Fazer exegese do que não está, contraria os manuais de interpretação de qualquer fundamentalista; mas, quem se preocupa com a incoerência quando se tem o poder de dizer o sentido, não é verdade?

É que o aparente sentido literal é mais fácil de ser determinado. O difícil é se apropriar da libertação da palavra nas metáforas, e o apontamento do excesso de sentido nos símbolos. É próprio do literalismo reduzir o sentido à etimologia. Como diz Tillich, um pano que se refere a um país, não é mais um pano, aponta para algo que está além dele, cujo sentido não pode ser determinado, se transforma no que pode ser chamado de bandeira, será um pedaço de tecido que passará a ser reverenciado, e se torna aberto de sentido. Nessa abertura de sentido entram paixão e sentimentos de profundidade do que se busca e deseja, e o que era se dá agora para além da compreensão. O pano se transforma em coletividade, história, memórias, lutas e libertação. Os símbolos religiosos são do mesmo modo. As narrativas sobre conversão são metáforas de morte, uma antecipação do bem supremo socrático-platônico, conquistado enquanto há vida; antecipado, mas ocorrido como evento final e transformador, porque a morte aponta para a vida, renascimento, o novo momento existencial quando então emerge a esperança, e tenho certeza de que Bultmann e Moltmann concordariam com isso.

Bem, de qualquer modo, talvez você tenha preferência pela literalidade absoluta, o que não tem qualquer problema. Eu prefiro ver o texto de Efésios como metáfora, desafio de entrega e despojamento da pessoalidade, colocados no tecido da literatura como um desejo de nascimento de um ser simbólico radical, que une o que aparentemente não pode ser unido, faz de dois um, e se dá a partir do abandono de um à outra, da outra ao um, por conta da paixão e identificação. Algo próximo do que diz Chico Buarque: “se na bagunça de teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu.”


Natanael Gabriel da Silva

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