“Nós não fazemos como Moisés, que cobria o rosto com um véu
para que os israelitas não pudessem ver que o seu brilho estava desaparecendo.”
2 Coríntios 3.13
Vou tomar o texto como metáfora. Seria por demais
interessante se, assumido literalmente, tivesse Paulo entendido que Moisés manipulara
a religião. Uma religião manipuladora e que esconde o divino, não é apenas um desvio interpretativo, mas uma fatalidade, pois com isso o ser humano perde a única possibilidade que tem para encontrar-se com o Sagrado.
Acho que a religião deveria ser eternamente grata às metáforas, pois
estas podem ser tanto fuga, como superação de sentido. Serve dos dois modos:
para dizer que o dito, não é o que foi dito, ou, para reafirmar que o sentido
do dito é mais profundo que o próprio dito. Então, como conservador, vou tomar
o texto como metáfora, salvar o texto e compreender que Moisés aqui significa a
totalidade da religião pervertida; entender que, quem escondera o
desaparecimento do primeiro brilho, fora a religião institucionalizada. Uma
metáfora que, diga-se de passagem, fora pensada a partir do evento do Horebe,
quando Moisés descera transfigurado do monte em razão do encontro com o divino. Brilho que durou pouco, e quando veio o Templo e sua religião formal, Paulo
juntou os dois e somou o brilho de Moisés com o véu do Templo, o que acabou por
resultar no ocultamento do mistério e da beleza do primeiro evento.
Daí concordo com Vattimo: a Igreja (não a que caminhava com Jesus,
como a comunidade do Sermão do Monte, mas uma outra que não se sabe nem de onde
veio) estragou o cristianismo. Então, se faço parte dela, eu estraguei o
cristianismo. O transformei em atos de celebração e culto, e me esqueci da
vida. Entrei pelas portas de um espaço dito como sagrado e disse que Deus
estava ali, que o mundo estava do lado de fora, que Deus precisava de mim para que eu cantasse e falasse o tempo todo, seguindo uma liturgia como sagrada, em
sua sequência, disposição e construção; transformei a oração, que deveria ser
vida e convivência com a pessoalidade de Deus, num produto de consumo. Fiz da
igreja, que não era igreja, uma empresa para angariar fundos e enriquecer
líderes e quando os pregadores midiáticos apareceram, achei que eu não era responsável
por eles, o que não é verdade. Esqueci-me de Jesus. Então o véu foi
engrossando, deu-se quase como impermeável e Jesus acabou mesmo do lado
de fora; o Jesus pobre, da Palestina, que incluía prostitutas no Reino,
conversava com gente da pior espécie, e, enquanto estavam os adoradores a
desfrutar das festas nacionais, como num dia de páscoa, eu fui pro Templo e me
esqueci do Jesus que fora visitar os miseráveis do poço, a curar doentes e cuidar
de pobres que nunca, jamais, poderiam dar qualquer retorno. Depois criei
igrejas, que não eram igrejas, aos montes. De todos os modos e nomes. Inventei
assim, um cristianismo, que nunca foi cristianismo, virou um sistema de poder
abstrato, que ninguém sabe onde está, e quem responde, não responde, porque depois
deixa de estar lá e fica pra outro assumir, como se fosse um bem público.
Transformei a igreja num inventário de declarações. Não há
de ver que eu me esqueci da polifonia do discurso religioso! Que ingenuidade!
Como não sou Bach, as muitas vozes ficaram como melodias isoladas e foi aí que
eu optei por
juntar as ideias num único lugar, composto pela expressão democrática da
coletividade, e surgiu então o que seria tecnicamente chamado de Declaração de Fé,
como se a fé não fosse declarada por meio da vida. Fé conceitual: ninguém merece. Ficou Declaração de Fé mesmo, coisa
que ninguém sabe o que é, nem para que serve, pois a polifonia hermenêutica não
se curva à imposição forçada de controle das ideias, nem mesmo pelo coletivo, e foi assim que virou
documento, só documento. É que eu precisava disso pra justificar o fato de achar
que todas as demais expressões religiosas estavam erradas, que eu tinha uma
identidade própria, histórica, e teve um momento que eu achei ter vindo e nascido
de João Batista, o que me tornava anterior a Jesus, ou ainda, mais cristão do
que o próprio Cristo (?). Se for assim, tenho então a primazia em dizer o que é
certo ou errado a todos os outros. Ora, se a hermenêutica é polifônica, achei
que poderia cantar sozinho todas as vozes, e, se ninguém compreende o texto
como eu, sinto muito, sou o único a estar certo, e se você desejar estar certo também, será
melhor submeter-se a mim.
Daí vem a questão: afinal, o que fiz do Cristo e sua mensagem
de Graça a restaurar a dignidade humana? Onde está o Cristo da profundidade da
alma? O Cristo da esperança, do perdão e da misericórdia? O Cristo do silêncio, da solitude, da inclusão e da solidariedade?
Não sei se sei. Talvez para além do véu.
Natanael Gabriel da Silva
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