“Então, Jesus lhes disse: Eu vos pergunto: É permitido fazer
o bem ou o mal no sábado? Salvar a vida, ou tirá-la?” – Lucas 6.9
A ideia não é minha. Não tenho tanta grandeza. Vou tomar,
sem rodeios, mas com inquietação, o insight
de Wittgenstein. Ele simplesmente pergunta se uma imagem difusa poderia ser
preferida a uma nítida. Ele mesmo responde que, em muitas ocasiões, a difusa
deve ser preferida, por que a nítida, embora clara, às vezes óbvia, poderia não ser necessária. De certo modo, o nítido das regras pode até estar no início de tudo, como ponto de partida, mas depois a vida se encarrega de ir mudando, alterando e por fim fica a memória inconsciente de regras que já não fazem sentido. A verdade então se dá como perdida, diluída, até se esparramar completamente. Fica menos densa, menos clara, e
as regras que deram início ao jogo, acabam por perder o sentido. Surgem outras, a partir das primeiras, mas dissociadas delas. O jogo que começa, não é o que termina.
Pois é, daí Jesus entrou, conforme as regras, numa
Sinagoga. Era sábado, e as regras permitiam isso. Entrou, sentou e começou a
ensinar, tudo pontuado na cartilha. Um doente, com a mão atrofiada, que também seguia as
regras, estava por ali. Daí as regras deixaram de ser suficientes. Jesus chamou
o doente, colocou-o no meio, e fez uma pergunta para os outros que entendiam de regras
pra ver se estas dariam conta da vida: - O que dizem as
regras sobre fazer o bem ou o mal no dia de sábado? Silêncio. O bem, como sabemos, era a
possibilidade de cura que estava a acontecer; o mal, como também sabemos, era ignorar o doente e fazer o
sofrido permanecer com o sofrimento, por conta dos impedimentos das tais regras que tinham iniciado o jogo. –
Que dizem as regras sobre a vida? – perguntou Jesus. Silêncio. Ora, as regras que
impedem a vida, atuam em defesa da morte, é claro. Jesus então, que obedecera as regras como ponto de partida, estabeleceu
novos caminhos, mudou os pressupostos, confundiu os
defensores das regras, e simplesmente fez o que regra nenhuma poderia declarar
que Ele poderia fazer. Curou.
Wittgenstein é uma festa quando emprestado à aparente
composição matemática das regras religiosas, seus princípios universais
aristotelicamente declinados pelo fascínio lógico e que geram a disposição
imediata à obediência, em razão de seus automatismos de acontecimentos
necessários, impostos pela coerência. Daí as regras mudam e vem a tal da
liberdade que mais parece esboço, não tem fronteira, ninguém sabe o seu limite,
e quando se pensa que alguma coisa caminhou em alguma direção, vê-se que a
liberdade é uma dimensão tão aberta da vida, que é reinventada cada vez quando
dela alguém se aproxima. Simplesmente foge. Do mesmo modo o amor, é claro. Até
o amarás ao Senhor teu Deus tem que ter a dimensão do humano que não se mede:
amar com todas as forças, de todo coração, como se coração tivesse esgotamento,
e de toda a alma, que ninguém sabe direito o que é nem o que significa. É o
mesmo que buscar na profundidade da profundidade o que não pode ser dito, onde
não é possível fazer qualquer medição, está fora da linguagem, não tem
universais para dar legitimidade e nem possibilidade de discurso, nem pode ser declinado como um
mecanismo estruturalmente válido. O amor é um vazio de tão grande, e ao mesmo
tempo tão cheio e completo, que não tem limites ou fronteiras, não pode ser compreendido senão pelo
exagero e dele só se pode falar por meio de metáforas. Quando alguém diz, o
amor é isto, ou aquilo, ao acabar de dizer já sabe que o dito ainda ficou
pequeno, faltou muito, ou talvez quase tudo. O amor então é difuso, não segue
as regras da linguagem, não pode ser contido na palavra, tem-se sempre a
impressão de que se trata de um esboço, ou de uma caricatura, mesmo se dando como a
obra de arte por excelência. Se o traçado já é assim, imagine a obra acabada.
Não imagine, você não vai conseguir.
Então, eu prefiro o retrato difuso do amor às regras nítidas.
Eu me rendo ao não saber o que é o amor, nem entender direito como ele é, nem como será,
sei que o possuo não possuindo, que o recebo sem receber, que lhe pertenço sem
pertencer, que nele estou imerso e flutuando, tanto presente quanto ausente,
pois ao mesmo tempo em que está, sinto como se faltasse, parece tudo, mas se
apresenta como pouco, estou sempre achando que poderia haver mais, quando
parece que já está completo, e tenho saudade dele como se não estivesse junto,
embora esteja nele colado, parece que no passado fora mais intenso, mas hoje é
o mesmo, no futuro será igual ao de hoje, mas também será outro, nele estou
sempre perdido, mas é onde acabo por me encontrar; o amor pode não ter rosto, mas
nunca vi algo tão humano. No esboço do que poderia ser, mas não é, o amor vai
simplesmente não sendo, para continuar o que sempre foi.
Há quem prefira a nitidez das regras. Sinto muito.
Natanael Gabriel da Silva
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