quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O FILHO QUE ESCOLHEU NÃO TER PAI





“E, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui preço de fome!” – Lucas 15.17

R. tem 22 anos, acho. É negro, cuida de dois irmãos, pelo menos. Trabalha lavando carros, dia sim e o outro também. É pai, mas não tem o filho consigo. Mora num lugar simples sem água e luz. R. não tem pai. Nem mãe. Os dois morreram cedo e eu nunca tive a coragem de perguntar os motivos das mortes. Também nunca perguntei se R. tem irmãos. Sei que ele gosta de vermelho, usa pulseiras e relógio, e é uma criança. Numa folga de serviço, R. brincava com uma bolinha, fazendo-a pular na parede e no chão. R. não escolheu não ter pai. A vida fez a escolha por ele.

Eu também desejei ter pai. O pouco que aprendi veio pelo viés do negativo, não deve ser assim, não deve ser assado, não deve ser daquele outro modo, nem deste modo; mas isso nem sempre é suficiente pra ensinar alguém a ser pai, não é verdade? Diferente de R., a escolha de não ter pai não foi minha, nem da vida, mas única e exclusivamente de alguém que não queria mais os filhos, pelo menos não aqueles. Só que, ainda diferente de R., a vida me presenteou com duas grandes mulheres, uma após a outra, sem interrupção de tempo, como se fosse produção em série. Entrei assim, com todos os dramas que a situação confere, para a estatística de órfãos de pais vivos. Deste modo, a escolha foi dele, não da vida, nem minha.

O filho pródigo, da parábola, escolheu não ter pai. E se o texto não dá nenhuma pista da motivação, é porque nenhuma explicação seria suficiente pra justificar a falta de sentido kafkiana da escolha. E o filho partiu. E o pai? O pai ficou. Não foi junto. Aparentemente não fez nada. Apenas amou, e isso é uma coisa que só o pai sabe o que significa. Amou por meio de um amor (quase) inoperante. Amor puro, só amor. Um amor generoso e benevolente: o que faltava ao filho sobrava no coração do pai. Só que foi um amor efetivo apenas como disponibilidade. Está aqui, bem aqui. Você foi embora, o amor não, e poderá vir buscá-lo quando desejar, e ele vai estar sempre aqui. Um amor ao alcance, que poderia ser visto, e foi; tinha cheiro de pai e gosto de saudade, mas no limite do disponível, não mais, nem menos. E o amor ficava à entrada da fazenda, bem à porta, e visitou o rebelde por meio da memória, como referência ética, tinha lugar e tempo; e quando o filho, que havia escolhido não ter pai procurou, reencontrou o pai e seu amor onde sempre haviam estado.

O filho escolheu não ter pai, depois escolheu ter pai outra vez, e o pai só fez a opção pelo amor. E foi tudo o que fez.

Natanael Gabriel da Silva



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