sexta-feira, 29 de agosto de 2014

APENASMENTE FLORA


“E, quanto ao vestuário, porque andais solícitos? Olhai os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem esmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.” – Mateus 6.28

Que coisa boa o presente que recebi hoje pela manhã! Ganhei de um amigo uma árvore inteira, um ipê amarelo, e acho que se Jesus estivesse caminhando por aqui, neste veranico fora de tempo, América do Sul, o observaria e diria: “Olhai os ipês amarelos...”

Talvez não dissesse isso. Os lírios são mais frágeis que os ipês, parecem mais desprotegidos, nascem corajosos, às vezes solitários, enfrentam a existência na simplicidade do apenas vida. Não sei se cuidado de Deus e vida aqui significam a mesma coisa. Você pode achar que há uma atenção divina, cautelosa, meticulosa e específica em relação a eles. Pode achar também que são apenas expressões da simplicidade bela da vida, que brota e vai vivendo como se viver fosse a sua única e exclusiva vocação. O texto não diz que os lírios são divinamente alimentados, muito menos os ipês. Fala dos pássaros e, por analogia, aproximamos as metáforas para alcançar a plenitude do que voa sem destino, com aquele que ocupa a terra. Pode ser também o cuidado de Deus, tanto ao que busca o que precisa, com ao que já tem o que necessita, como o lírio, e seu trabalho consiste apenas em existir. Nesse caso o lírio superlativamente existe, mais que o pássaro. O lírio é pura existência. Além disso o texto bíblico diz que Salomão jamais conseguiria se vestir como o pequeno, frágil e solitário lírio. Diz que a vestimenta deve vir de Deus, que o ser humano se preocupa em sobreviver mais que o lírio, mas não consegue ser como ele é. O lírio apenas é.

É claro que lírios e ipês me jogaram a Belchior, é evidente. Belchior menciona o rio que corre parado, e a dançarina de pedra que, em seus movimentos, evolui.  Ele, o poeta, se dá completamente sentado, sem meta, sem nada, e faz um contrabando dos versos de Pessoa (Álvares de Campos) e sua Tacaria, do não sou nada, nunca serei nada, não posso não querer ser nada, à parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo, para finalmente evocar: Vede: o pé do ypê (apenas MENTE) flora /  R-E-V-O-L-U-C-I-O-N-A-R-I-A-M-E-T-E / a-penso ao pé da serra.” O apenas MENTE é genial, ao escutar a canção, o que fica é um “apenasmente”, como um acessório. Porém, na letra da poesia concreta de Belchior, você lê que o ipê é um que engana a vida com a sua florada. Segue ainda a expressão “apenso”, que na voz se dá num estando secundariamente colocado junto à serra, mas na letra é registrado como a-penso, do pensar do poeta que julga a mentira declarada do ipê. Um ipê revolucionário que insiste, apenasmente em existir, mas mente ao mostrar vida numa existência tão fragilizada como a nossa.

De uma coisa sei: os lírios e os ipês são frágeis, como a vida é frágil; que a vida simples é a melhor roupagem; que a beleza da vida é sua própria aparição e isso não muda o estado da existência fragilizada do dia de amanhã, mesmo que a ameaça seja o de ser lançado no fogo, como diz Jesus. O importante é ser, estar, existir, florescer e embelezar a vida, apesar do tempo e sua fatalidade.

Natanael Gabriel da Silva

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