“Ouvistes o que foi dito aos antigos...” (Mateus 5.21a)
Tem gente que indica o caminho errado, mas com convicção...
Daí eu estava em frente a um banco. Esperava uma ligação.
Entre a ansiedade do tempo perdido e a dúvida se a coisa iria dar certo, o
jeito era sentar à sombra projetada do prédio e ficar olhando o movimento da
Andrade Neves naquele sol das quatro. – O senhor sabe onde vida a Frei
Manuel da Ressurreição? Perguntou alguém meio transpirando de tanto andar;
camisa social, calça também e sapato idem. Sabe aquele segundo quando você
pensa na informação? Eu estava, como dizem, abrindo a boca e levantando o braço
pra apontar a direção, quando apareceu uma senhora e seu cachorrinho, tomou a
frente com autoridade: - Olha o senhor desce por aqui, vai ter uma curva no
final, vira à direita três ou quatro quadras acima vai cruzar com ela. O homem,
que estava apressado, agradeceu, atravessou a Andrade Neves em disparada aproveitando
o momento do trânsito livre, e tomou o rumo. Olhei para a senhora e disse: - Mas
a Frei Manuel da Ressurreição começa, lá embaixo, de uma rua que depois muda de
nome, depois cruza a Brasil e termina na Imperatriz, e está exatamente no lado
oposto que a senhora indicou. Ela não esboçou nenhuma reação, deu um sorriso de
conveniência, olhou pro minúsculo cachorro, e falou alguma coisa do tipo: É
mesmo? Que coisa! É que é tanta rua...
Acho que a religião se parece com isso: é pródiga em mostrar
o caminho errado, mas com convicção. Convicção que toca no imaginário do
profundo e misterioso que só aos clérigos (pastores, padres, pais de santo e
afins) têm acesso. Manda o sujeito a pé, porque na vida mesmo, vida com “V”
maiúsculo, todo mundo anda igual, mora igual, tem o mesmo padrão social, e
sofre do mal do medo do mesmo destino. Ninguém anda de Jaguar, nem mora em
mansão, nem ganha nada mais que o outro, e o medo do futuro emerge na
pergunta do para onde vais. O caminho é esse e quem indica outro traçado mostra
o errado, mesmo com destreza,
citação de texto e confirmação tanto do diagnóstico como do prognóstico. E se
você fizer a leitura do Sermão do Monte vai ver que isso é antigo. Daí o
sujeito aparece matando em nome de Deus, seja Jeová, seja Alá. Tá errado! Não
matarás, disse Jesus, qualquer que seja o motivo! Não matarás e farás amigos.
Não está escrito assim, mas está pelo caminho do perdão e da fraternidade.
Religião não é coisa do mundo exterior, dizia outra vez Jesus. No seu coração,
já cometeu pecado se fizer isso ou aquilo. O exterior são os ritos, as
doutrinas pra outros ficarem observando se você faz certo ou errado, e no final
Jesus vai dizer que o tal caminho é largo: largo porque é fácil seguir regras; é largo porque vai ter muita gente andando por ele e é o caminho que vai dar no
nada, talvez pior, vai estar no oposto, e você ainda não acredita se eu lhe
disser que os grupos religiosos ficam a se digladiar e a se matar, com convicção e a defender cada qual para si o direito de mostrar o caminho
errado, que aparece nas formas de culto e celebração, regras e dogmas, disso e daquilo, você
está errado então não tem parte comigo, não podemos andar juntos, você joga
água na cabeça de criança, eu gosto de dar banho no corpo inteiro, você
acredita que a Graça é pra todo mundo, eu acredito que Deus já escolheu uns e
outros e outros não, pronto, você vai pra um lado eu vou pro outro, e por aí se
vai. E que caminho é esse? Perdoa, diz Jesus, você e o outro que vão ao altar,
juntos, aproveitem a conversa pelo caminho pra superar as rugas e limites, porque
vocês juntos é melhor que qualquer celebração, adoração, exaltação e
sacrifício. Não foi isso que disse Jesus? Foi, ora se foi. Deixe o olho por
olho aos antigos, e nisso nem o Salmo 23 escapa, porque aquela coisa de colocar
uma mesa farta e comer enquanto o inimigo acabado, derrotado, despojado, fica
olhando não cabe na humanização do cristianismo. Uma vez, estudando esse texto,
o intérprete dizia que se tratava de uma celebração de paz, e ele vai ter que
me convencer que Davi, especialista na arte da guerra e rei, no tempo primitivo
do extermínio total do inimigo por causa da raça, faria isso. Endereço errado,
com convicção. Salva Davi, mas sofre o caminho. O Pastor do Salmo continua o
mesmo, isso sim, só que não apenas dele, Davi, como se fosse posse pessoal,
necessária para ter o domínio de vida e morte sobre os súditos. Nada disso. O
Senhor agora é Pastor pra todo mundo, e entenda isso como desejar. Então o olho
por olho e dente por dente é caminho errado. O caminho agora é amar os
inimigos, orar por eles, e lembrar que quando Mateus escreveu isso o inimigo, era
inimigo mesmo, perseguidor de tirar a vida do miserável perseguido, e não
aquele inimigo subjetivo, da inimizade emocional, que é muito, mas muito mais
fácil de ser resolvido.
O Sermão do Monte não termina assim. Entra pelo caminho da
devoção profunda, do quarto e cubículo onde só cabe o que chamo de “eu”, vai
pelos tesouros da vida, e pouco adiante aconselha, cuidado com os falsos
profetas, porque eles dão endereço errado, e vai mandar você, com convicção,
para o lado oposto, você vai ficar mais perdido do que era antes, menos gente e
pessoa do que sempre foi, e vai trocar a dúvida pelo dogma ou doutrina, quando
a verdade cristã é tão humana que se deu como uma pessoa, coroado pela morte; e algo mais humano que a morte, não conheço. Então duvide da religião desumana,
legalista, desprovida de compaixão, comercialista e empresária da fé, segregadora de gênero, que só sobrevive de liturgias, orações e cânticos; cuidado com a religião que promete o que não
pode cumprir, das curas que nunca curam, da vida fácil que nunca vem, e do
conforto que só beneficia aquele que promete.
Este texto já foi longe demais, mas o cristianismo humano é solidário
com a miséria, não faz exceção de quem quer que seja, é do Cristo pobre, da
palavra simples e grudada com a vida no discurso do caminhante. Aquele que vai pelo caminho onde não será possível levar nada e larga até o que parece não ter peso como
dores e memória; o cristianismo humano é o discurso dos lírios do campo que só
vê quem anda a pé; e quem ainda não admirou como é que um pequeno pássaro sobrevive
na natureza, sem proteção, ainda não entendeu o que significa ser cristão. Parece simples. E é.
Natanael Gabriel da Silva
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