“E disse-lhes: Esta casta não pode sair com coisa alguma, a
não ser com oração e jejum” – Marcos 9.29
A tradução “casta” já é pejorativa. “Espécie” cai melhor, e
que não tem nada a ver com Darwin, por favor. Também “jejum” não aparece nos
melhores manuscritos, pois os mais antigos que a contém, um está num estado de
conservação que não permite uma afirmação segura e outro é resultado de correções.
É possível que “jejum” tenha sido acrescentado em razão de ser prática comum na
igreja primitiva.
Fiquemos então só com a oração.
Num dado momento o êxtase vivido no monte tem que descer e se
deparar com a vida, como aponta Clademilson Paulino, e a vida se
apresenta em condição de miséria e intermináveis debates entre a teologia e a
tragédia. A teologia, já a conhecemos. Nela reside o sonho da compreensão
perfeita para se tomar posse das virtudes por meio de atalhos e conceitos. Isto
é vero: não é possível avaliar o quanto de cristãos aprendem apenas, e tão somente, os códigos herméticos da linguagem da religiosidade e, na medida em que o fazem, se
tornam diametralmente opostos e distantes, tanto do monte (Marcos 9.2-13), como
da vida e suas contradições (Marcos 9.14-29). Com outras palavras, não são nem
místicos, nem aptos para o exercício da compreensão do ser humano em sua
condição marginal. Eis a Igreja que gosta de cantar.
O demonismo que aparece no texto é o menos importante
(Marcos 9.14-29). Demônios vão e vêm como se fosse um caminhar pela própria
casa. Só que o debate teológico, que encerrou com o dito de Jesus, já estava
posto e havia um desencontro sobre poder ou não poder; por parte dos apóstolos
eu posso vocês não podem e por parte dos escribas nós não podemos, mas vocês
também não. Um verdadeiro circo coberto de palavras, manipulação e torcida. Aos
apóstolos seria útil mostrar que eles podiam, pois afinal estavam também em busca
de identidade. Os escribas queriam que desse tudo errado, que nada
acontecesse a não ser o fato do infeliz continuar possesso, mudo e surdo,
porque ter razão é melhor que ver alguém libertado e humanizado e não importa a
desgraça dele se for esse o preço a ser pago para mostrar que a minha crença é
que é a correta, e que tudo mais vá pro inferno, inclusive e especialmente os
que me dão razão por meio do sofrimento e morte.
Então aparece Jesus, dialoga de maneira rápida, começando
com um sonoro “geração incrédula”. O pai, em lágrimas pedia sem acreditar,
porque o amor ao filho era mais expressivo que a fé e foi justamente por causa
disso que foi atendido, porque falta de fé até dá pra suportar, mas falta de
amor, evidentemente não. Feita a humanização do antes endemoniado, entrou a
resposta sobre o feito, cuja explicação não era uma questão de estratégia,
domínio ou manipulação do sagrado, mas oração, só oração. Não da oração mágica,
é claro, movida por um sentimento subjetivo, ou demonstração de poder e
controle sobre o sagrado. Deixe isso para os empresários da fé. Era a oração
que Jesus trouxera do monte (9.2-13), e antes disso, do suportar a morte abrindo
mão da vida (8.34-38), antes disso ainda, a confiança em sua pessoa (8.27-33),
e assim por diante, um adiante para trás no texto e na vida de Jesus, porque
naquele momento a oração era o ponto agudo de toda uma existência. Não tinha
nascido ali, naquela hora e instante. Vinha de antes, um longe anterior, regado
à vida, misericórdia, perdão, inclusão, fraternidade e solidariedade. Quer
mais?
Daí me aparecem aqueles que querem saber do segredo. Como é
que o senhor faz? Qual fórmula secreta? Qual método? Seriam as palavras, beleza
e sequencia? Talvez a maneira de se fazer? O que estaria faltando se fizemos
tudo certinho? Diga pra nós: qual é o pulo do gato? E queriam fazer o milagre
sem o profundo sentimento pela miséria humana, um não entender nem a razão da
estada no monte, muito menos as lágrimas e o amor do pai.
Na ausência de tudo, Jesus disse que faltava apenas a
oração, que estava naturalmente emendada com um estilo de vida, marcado pelo
compadecimento, misericórdia e cumplicidade no sofrimento humano. Que não era
um modo de falar, mas de se viver. Que não adiantava querer evocar os céus de
um momento para o outro como se fosse um passe de mágica. Até porque a oração nunca foi, ou nunca deveria ter sido,
produto de consumo, hoje tão explorada, comercializada e, principalmente, cara, caríssima, enriquecedora de sacerdotes e pastores na exploração de miseráveis e alienados.
Simples: uma vida coalhada de tudo. E a oração de Jesus saiu como uma
conversa em forma de poesia que restaurou a vida e a dignidade humana de um
abandonado. Não foi apenas banir o mal, limpar e restaurar, mas uma declaração
que vida se conquista com vida, e a oração é o caminho entre uma vida e outra,
de quem a dá para quem a recebe.
Natanael Gabriel da Silva
Como faz bem viver livre do fundamentalismo e vivenciar o evangelho na sua simplicidade e profundidade. Um abraço!
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