terça-feira, 11 de março de 2014

A JORNADA




E, quando orardes, não sejas como os hipócritas, pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai, que vê o que está oculto; e teu Pai, que vê o que está oculto, te recompensará. - Mateus 6. 5-6

É assim: a jornada começa na sinagoga, vai pra rua, depois pra casa, mais precisamente para o quarto, e no quarto, a profundidade da alma. Deus não está necessariamente na sinagoga, nem na rua, e nem no quarto. O único lugar possível de encontrá-lo é no abismo da vida.

Foi rápido demais, eu sei. Então, vamos começar pelo começo. A sinagoga, a igreja, a comunidade, enfim, qualquer espaço onde o sagrado se manifesta, é na verdade o lugar da competitividade e da comercialização do simbólico religioso, cuja moeda de troca é o prestígio e a admiração.  É o espaço da manifestação dos dons espirituais, escolhidos e assumidos dentre aqueles que dão notoriedade ao possuidor. Tanto faz, pode ser o domínio de uma área de conhecimento, o exercício do sobrenaturalismo, ou uma função política-institucional; qualquer destas coisas, próximas ou distantes, se dão no espaço circunscrito onde Deus é delimitado e que chamamos de templo. Agora, saindo pra rua, miserável é aquele que não vê as pessoas nem o cotidiano, e carrega consigo para além das fronteiras, o modo de vida da qual se envaidecia no sagrado. Já não servia para lá, sinagoga ou igreja, nem vai servir para cá, pra rua, lugar onde estão aqueles que não podem e não têm instrumentos para competir com a espiritualidade oficial. Na rua tem gente comum tentando sobreviver num drama social que nem mesmo eles entendem, e, do ponto de vista formal, lá não existem competidores por estarem todos aquém. A isso, o discurso oficial, chama de mundo profano. Por serem banidos e excluídos do sagrado, quem está na rua, corre o risco de admirar ainda mais o portador das virtudes e dos dons espirituais, que saíra do templo,  o que torna o excluído mais excluído ainda, e o religioso superlativamente miserável.

Bem saindo da rua, o caminho é o da casa. Não tem nada a ver com a questão do público que está nas ruas, com o privado da casa, isto é, com a religião que se manifesta no âmbito individualidade. Nada disso. É que tanto na sinagoga, como na rua, o religioso fica pensando como é que as demais pessoas estariam vendo a espiritualidade dele. É semelhante ao que possui um carro que ninguém tem, e como não pode descer do veículo pra se ver dirigindo, precisa imaginar e projetar a admiração dos outros a si mesmo. Com outras palavras, se admira com o que imagina estar ocorrendo a partir do outro, e se olha duas vezes: olha pra si, e pensa que os outros também olham para ele, e assim se vê através de si mesmo e através do outro. Neste caso, o outro, como pessoa não existe. O problema deste religioso não é apenas um modo de fé ou liturgia, mas de isolamento, individualidade e orgulho. É isso que é ser miserável no superlativo. 

Então, para romper com a imaginação e admiração por si e através dos outros, é preciso ir pra casa. Em casa, ir pro quarto, e dentro do quarto, encontrar os demônios que estão dentro da alma, dar-se no derramamento, no profundo ato de sinceridade e solidão, lugar onde as palavras não são suficientes, na queda livre para dentro de si a uma conversa franca, consigo mesmo e com aquele que conhece a vida pelo lado de dentro. E, do lado de dentro, o Pai. E o Pai, é o Pai. O pegar pela mão está no profundo. Lá está também quem agasalha, protege, ampara, mostra a trilha da vida, olha filho vá por aqui, assim não, é deste modo que se faz, olha bem, e daí é só ir conversando, ficando quieto pra ouvir,  e quando pergunta, já que lá não tem palavras, a resposta já vem antes como se pergunta não tivesse havido, e o diálogo prossegue, porque dentro do quarto, o tempo fica suspenso como se não houvesse tempo e a conversa entra noite adentro como se não houvesse noite. Não tem noite, não tem dia, tem apenas profundidade e o Pai presente no lugar que não tem lugar, conversando para além das palavras, e dando conselhos que vão além dos conceitos. Depois é voltar pra rua e enxergar o outro, ver a vida, a miséria, e se dar como profeta contra a desumanidade. É assim que se aprende a amar.

Nem sei se é simples. Só sei que é assim.

Natanael Gabriel da Silva

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